A arte do cuidado



Eu lembro quando ela desceu apressada, naquele dia com a expressão amarrada. As mãos calejadas pelo tempo, e pelas histórias que ela ainda não pode compartilhar comigo, agarraram com pressa uma almofada que repousava sob uma cadeira, levando a ambas para longe dali.
Fiquei por alguns segundos, observando ela sentada, olhando para a rua, o semblante sério. Me aproximei, parando ao lado da cadeira, na tentativa de iniciar alguma conversa, de integrá-la ao trabalho que fazíamos naquele dia.
“Tudo bem, dona Osvaldina?” perguntei, lembrando da história que um colega havia contado anteriormente, de que ela era uma senhora animada, que se intitulava rainha do asilo e que gostava de contar suas histórias da dança com o guarda-chuva, que a fez passar até na televisão.
Talvez fosse naquelas lembranças é que estivesse um dos meus erros-talvez não tão erros assim. Esperava que ela respondesse algo alegre, que a conversa fluísse de forma natural, como vinha acontecendo nas minhas experiências até ali. Afinal, ela era a senhorinha animada que dançava no asilo...Mas minhas expectativas foram frustradas. Várias vezes.
A senhora de cabelos brancos curtinhos, sempre com um chapéu, sequer respondeu minha pergunta. As palavras que ela me dissera, uma espécie de crítica, ou algo que eu até hoje ainda não pude entender, me pegaram desprevenida. Por longos segundos fiquei sem saber o que falar – algo raro para uma geminiana bem falante como eu. Quando finalmente consegui arriscar algumas palavras, escapou-me uma tentativa de defesa, como se qualquer coisa que eu pudesse falar fosse me fazer um ser humano melhor.
As frases seguintes pareciam correr nesse mesmo ritmo angustiante, até que meus olhos repousassem sobre um radinho preto que ela trazia no colo.
 “A senhora gosta de ouvir música?”
Perguntei em seguida, como se aquilo fosse trazer, magicamente, algum rumo mais agradável para aquela conversa.
Ela me respondeu que era óbvio que sim, por isso ela andava com um radinho na mão. E, eu estranhamente, tentei me defender mais uma vez, explicando que ela poderia gostar de ouvir notícias ou assistir futebol... Ela disse que aquilo tudo era bobagem, como se eu estivesse falando um grande absurdo, emendando em seguida, com uma ponta de animação, de que aquele havia sido presente de suas amigas e que música era uma das grandes alegrias de seu dia. Ela gostava de ouvir todos os estilos musicais. Nesse ponto, parecia que as coisas se alinhariam naquela conversa, mas novamente, meu planejamento falhou miseravelmente mais uma vez, a ponto de me fazer quase desistir.
 Não conseguia entender exatamente o que estava acontecendo, então expliquei, sem jeito, que se ela não quisesse conversar, estava tudo bem, eu iria entender. E aí, eu descobriria que talvez fosse exatamente aquele o problema. Aquela provavelmente era uma solução mais agradável para mim, que queria desesperadamente fugir da situação, do que um benefício para ela. Ela me disse para pegar uma cadeira e sentar ao seu lado, pois queria me dizer umas coisas.
Não titubeei, talvez por me sentir sem saída naquele momento, em sentar ao seu lado, ainda sem saber o que estava por vir. Mal imaginava eu que as palavras que ela diria em seguida, apesar de não serem tão agradáveis de ouvir, seriam tão importantes.
Ela começou a me dizer, em uma fala apressada, em um olhar cansado, que pulava do meu rosto para a rua atrás das grades dos portões, o quanto ela estava realmente exausta.
Estava cansada de contar a história dela todas as vezes que alguém tentava iniciar uma conversa. Estava cansada de remexer nas feridas do passado, pensando que estava presa ali dentro, com sua liberdade privada por aquelas grades que ela encarava com pesar. Sentia saudade dos tempos em que podia ir nos bailes, sair na rua, passear para onde quisesse. E me lembrou de como nós, que temos essas oportunidades, nem sempre somos gratos ou agradecemos por essas, pequenas, mas tão grandes, coisas da vida.
Ela queria fazer atividades, se divertir, dançar, jogar bola – igual ao que os meninos faziam quando iam visitar o asilo. Eles eram mais divertidos, segundo ela. Eu lembro quando ela começou a chorar, quando um colega se aproximou nos avisando de que seria a hora de ir embora, se desculpando várias vezes pelo que havia acontecido. Eu quase chorei junto, e não saberia nem dizer se era de alívio, desespero ou culpa. Mas no fim, em meio as palavras contínuas de desculpas que ela me dirigia e aos pedidos por novas atividades eu comecei a compreender algumas coisas, como se finalmente toda aquela conversa estivesse fazendo algum sentido. Compreendi que ela precisava de mudança, assim como podia acontecer com vários deles ali, e no fim, até agradeci, genuinamente, por ela ter compartilhado aquelas angústias comigo. Eu não posso imaginar o quão difícil aquilo pode ter sido para ela.
 Levei um bom tempo processando isso, as palavras que nós trocamos, até o tom delas. Talvez ainda não tenha compreendido a magnitude do que isso significa para mim e no que isso mexeu no meu ser. É um processo singular, silencioso e demorado. Ás vezes, acho que até hoje a dona Osvaldina não vai lá muito com meu jeito, ou com “a minha cara”, como diz nossa geração.
Por alguns dias, a frustração me acompanhou, como costuma acontecer com meu planejamento mais bobo dá errado, me fazendo perguntar os por quês. Afinal, o que eu tinha feito de tão errado? É que às vezes, é tão difícil simplesmente ouvir e tão difícil admitir esse fato, que ficamos procurando estes deslizes.
 Ás vezes, eu penso, qual seria o rumo que as conversas tomariam se a gente chegasse lá, uniformizados de médicos em nossos simbólicos jalecos brancos. Será que seria a mesma coisa? Provavelmente não. Talvez, eles fossem compartilhar mais sobre sua saúde no linguajar médico das patologias, como dores nas costas, tosses e outros sintomas, talvez eles corressem com suas queixas e exames, como alguns familiares de nós fazem. Mas, acredito que para os ouvidos atentos, as demandas não seriam assim, tão diferentes.
Acredito que sentar, ter ouvido e pensado em todas aquelas coisas, também represente um tipo de cuidado em saúde - e um cuidado que pode ser tão difícil quando fazer um diagnóstico do Dr. House.  É um cuidado nas mais diversas facetas que a saúde possui. Acho que esse é um dos grandes aprendizados que a dona Osvaldina me trouxe, nessa conversa difícil, que por um pouco, não me fez sair de lá me sentindo o pior ser humano que já pisou sobre a face da terra.
Nem sempre ouvir o outro é fácil. Nem sempre entender o que foi nos dito como uma demanda, vai ser fácil, até porque às vezes, as palavras são duras, carregadas de emoções, sentimentos e dores. Dores que a própria senhora, com sua história animada da dança na chuva, carregava naquelas lágrimas no final da conversa. E talvez, naquele dia- assim como na maioria dos outros- meu papel lá, era muito mais ser educada, do que educar em saúde, uma tarefa que também está permeada de desafios.
Talvez eu passe alguns bons dias, meses ou anos pensando nessa história, como se tivesse algo escondido ali, nas entrelinhas da minha memória, para ser descoberto. Mas hoje, só posso esperar que esse tempo que passa, que os meses, dia e anos de vida, de práticas, de escuta, mas também de falatório, possam me ensinar mais sobre essa arte. Sobre essa arte de cuidar, de escutar, de estar presente.
Ás vezes, o plano dá errado, o caminho é difícil.
Mas que a gente não desista dos outros, nem das outras pessoas Osvaldinas por aí.


Autoria de Fernanda Madruga Prestes, acadêmica de medicina na FURG e extensionista da LES.

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